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sábado, 27 de agosto de 2011

Lei dos crimes contra a dignidade sexual: mais benéfica?

A Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, que introduziu importantes modificações na legislação penal, trouxe em seu texto controvérsia, no que diz respeito à classificação das condutas que passaram a ser previstas na redação do art. 213 do Código Penal.
In verbis:
"Estupro 
Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: 
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos."
Com efeito, um único tipo penal passou a incorporar condutas autônomas, que antes eram conhecidas como "estupro" (art. 213) e "atentado violento ao pudor" (art. 214, ambos do mesmo Código Repressor).
Portanto, resta saber se foi simplesmente revogado o crime de atentado violento ao pudor, sendo, por conseguinte, a nova redação legal mais benéfica, aplicável a todos os casos, mesmo os já transitados em julgado.
Isso porque, apressadamente, boa parte da doutrina e jurisprudência já sustenta que, em razão na nova redação do tipo penal, há crime único, encerrando maiores debates quanto às modalidades de concurso de crimes. A propósito, ver a Apelação Criminal n° 2009.038539-0, julgada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina [01].
Entretanto, a fim de dirimir a questão, em primeiro lugar, é necessário conceituar que a referida legislação é, ao menos em tese, mais gravosa, pois resultado da conhecida "CPI da Pedofilia". Por outro lado, também a indicar essa tendência, está o fato de que tais crimes, antes tidos como contra os costumes, passaram a ser contra a dignidade sexual.
Acerca da nova redação do Título VI do Código Penal, Guilherme de Souza Nucci observa que:
"Dignidade fornece a noção de decência, compostura, respeitabilidade, enfim, algo vinculado à honra. A sua associação ao termo sexual insere-a no contexto dos atos tendentes à satisfação da sensualidade ou da volúpia. Considerando-se o direito à intimidade, à vida privada e à honra, constitucionalmente assegurados (art. 5º, X, CF), além do que a atividade sexual é, não somente um prazer material, mas uma necessidade fisiológica para muitos, possui pertinência a tutela penal da dignidade sexual. Em outros termos, busca-se proteger a respeitabilidade do ser humano em matéria sexual, garantindo-lhe a liberdade de escolha e opção nesse cenário, sem qualquer forma de exploração, especialmente quando envolver formas de violência."
Nesse contexto já parece evidente que, a pretexto de tratar mais rigorosamente a gestão, é impróprio conceber que tenha sido operada verdadeira abolitio criminis.
De fato, o fenômeno de fusão dos antigos tipos penais em um único artigo de lei é o que a doutrina denomina "continuidade normativo-típica". Assim, o que era proibido antes continua proibido na nova Lei, apesar das alterações, como esclarecem Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:
"Revogação de lei e não ocorrência da abolitio criminis: mas não se pode nunca confundir a mera revogação formal de uma lei penal com a abolitio crimins. A revogação da lei anterior é necessária para o processo da abolitiocriminis, porém, não suficiente. Além da revogação formal impõe-se verificar se o conteúdo normativo revogado não foi (ao mesmo tempo) preservado em (ou deslocado para) outro dispositivo legal.
Logo, nessa hipótese, não se deu a abolitio criminis, porque houve uma continuidade normativo-típica (o tipo penal não desapareceu, apenas mudou de lugar). Para a abolitio criminis, como se vê, não basta a revogação da lei anterior, impõe-se sempre verificar se presente (ou não) a continuidade normativo-típica."
Sendo assim, a atual figura do art. 213 do Código Penal reúne dois tipos antes distintos e que, hoje, ainda não se confundem, diferindo o constranger alguém à conjunção carnal, do constranger alguém a outro ato de penetração diverso – sexo oral ou anal, por exemplo.
Como se vê, o que antes, sob o nomem iuris "estupro" contemplava apenas uma única espécie de vítima – a mulher – e um único ato lascivo – a conjunção carnal –, agora, mas ainda sob a rubrica do mesmo nomem iuris, passou a abarcar vítimas de sexos distintos – masculino e feminino – e outras condutas além da conjunção carnal – prática de ato libidinoso diverso.
E a compreensão de que o estupro adquiriu uma outra hipótese de tipificação induz a mais uma conclusão, de que se está diante, agora, de um "tipo misto cumulativo", dada a possibilidade que estabeleceu a nova redação do tipo penal do artigo 213 do Código Penal, de violação do bem jurídico tutelado pela norma penal – a dignidade sexual – por meio de condutas distintas e autônomas.
A propósito, robusta corrente jurisprudencial, na linha dos seguintes julgados do egrégio Superior Tribunal de Justiça, a quem a Constituição Federal conferiu o dever de unificar a interpretação da legislação federal:
"(...) ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. INCIDÊNCIA DA LEI 12.015/09. INADMISSIBILIDADE DA HIPÓTESE DE CRIME ÚNICO. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA. 1. A apreensão e a perícia da arma utilizada no crime de roubo, quando impossível, não afasta a incidência da causa especial de aumento de pena, mormente quando a prova testemunhal é firme sobre sua efetiva utilização durante a prática da conduta criminosa. Precedentes do STJ e STF. 2. Com relação à incidência da Lei 12.015/09, esta Corte já se posicionou pela não ocorrência de crime único ou em absorção de um tipo pelo outro. 3. Opina o MPF pela denegação da ordem. 4. Ordem denegada." [02]
"HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONDENAÇÃO PELOS CRIMES EM CONCURSO MATERIAL. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N.º 12.015/2009. REUNIÃO DE AMBAS FIGURAS DELITIVAS EM UM ÚNICO CRIME. TIPO MISTO CUMULATIVO. CUMULAÇÃO DAS PENAS. INOCORRÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. (...) 3. Se, durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente, ocorreu mais de uma conjunção carnal caracteriza-se o crime continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de uma repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal. Ou seja, a nova redação do art. 213 do Código Penal absorve o ato libidinoso em progressão ao estupro – classificável como praeludia coiti – e não o ato libidinoso autônomo, como o coito anal e o sexo oral. (...)" [03]
Por outro lado, é sabido que, como muito bem anotado por Rogério Greco, "Foi adotado, portanto, pela legislação penal brasileira, o sistema restrito no que diz respeito à interpretação da expressão conjunção carnal, repelindo-se o sistema amplo, que compreende a cópula anal, ou mesmo o sistema amplíssimo, que inclui, ainda, os atos de felação (orais)", mesmo após a edição da referida Lei.
Vale dizer, em consequência, que se cuida de injustos de gravidade progressiva, até mesmo em razão das consequências advindas da prática dos diferentes atos libidinosos (gênero), do qual a penetração vaginal e a demais formas de relação sexual são espécies distintas.
Nesses contornos, quanto à interpretação profunda e adequada que convém ser adotada no caso, talvez a percepção de Vicente Greco Filho seja a que mais se afigure ideal:
"A interpretação que se está querendo intrujar é a de que, tendo sido revogado o art. 214, deixou de existir o crime de atentado violento ao pudor a lei é mais branda e, portanto, retroage para beneficiar os condenados por atentado violento ao pudor em concurso com o estupro para que se entenda que o crime é único, de estupro, ainda que mais de uma agressão sexual à mesma vítima tenha sido praticada em momentos diferentes e sob diversas formas. O estupro na forma de conjunção carnal absorveria as demais condutas.
[...]
Se, durante o cativeiro, houve mais de uma vez a conjunção carnal pode estar caracterizado o crime continuado entre essas condutas; se, além da conjunção carnal houve outro ato libidinoso, como os citados, coito anal, penetração de objetos, etc., cada um desses caracteriza crime diferente cuja pena será cumulativamente aplicada ao bloco formado pelas conjunções carnais.
A situação em face do atual art. 213 é a mesma do que na vigências dos antigos 213 e 214, ou seja, a cumulação de crimes e penas se afere da mesma maneira, se entre eles há, ou não, relação de causalidade ou consequencialidade. Não é porque os tipos agora estão fundidos formalmente em um único artigo que a situação mudou. O que o estupro mediante conjunção carnal absorve é o ato libidinoso em progressão àquela e não o ato libidinoso autônomo e independente dela, como no exemplo referido.
Não houve, pois, abolitio criminis, ou a instituição de crime único quando as condutas são diversas. Em outras palavras, nada mudou para beneficiar o condenado cuja situação de fato levou à condenação pelo art. 213 e art. 214 cumulativamente; agora, seria condenado também cumulativamente à primeira parte do art. 213 e à segunda parte do mesmo artigo.
Por todos esses argumentos e em respeito ao espírito da lei e à dignidade da pessoa humana, essa é a única interpretação possível, eis que, inclusive, respeita a proporcionalidade. Não teria cabimento aplicar-se a pena de um único estupro isolado se o fato implicou na prática de mais de um e de mais de uma de suas modalidades, a conjunção carnal e outros atos libidinosos autônomos." [04]
Não se trata, então, de crime de ação múltipla ou conteúdo variável, pois não se estabelece mais de um núcleo do tipo (como no caso do tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da Lei n° 11.343/06), limitando-o apenas ao verbo "constranger". O que varia é o complemento verbal, que não integra o núcleo do tipo e pode, portanto, ser duplo, ensejando a caracterização de dois crimes distintos.
Mormente nos casos em que, à luz do modus operandi empregado pelo abusador, resta evidenciado que as ações foram motivadas por desígnios autônomos.
E como se não bastasse, é totalmente pertinente, por fim, a advertência presente no Parecer n. 005/2009/CCR, elaborado pelo competente Centro de Apoio Operacional Criminal – MP/SC, lembrando que, caso seja reconhecida a unidade pretendida, será efetivado verdadeiro incentivo a essa modalidade abjeta de crime:
"Na prática, ocorrerá o seguinte: se o agente constranger a vítima e com ela praticar algum ato libidinoso (como, por exemplo, apalpadelas lascivas), pode também praticar conjunção carnal sem cometer outro crime. Ou seja, praticando um dos atos criminosos, o autor terá acesso livre para cometer outra figura típica sem ser punido por ela, resultando apenas em fixação da pena base (artigo 59 do Código Penal) de forma distinta." [05]
A tese da dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais já foi objeto de interessante estudo de Luciano Feldens [06].
Conclui-se, pois, que é inviável sustentar a hipótese de crime único, em razão da nova redação do art. 213 do Código Penal, dada pela Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, uma vez que, nesse caso, estão em colisão a proporcionalidade (proibição de excesso e proibição de proteção deficiente) e a garantia fundamental à segurança pública, que inspira as referidas restrições constitucionais relacionadas à prática do delito em comento, tido como hediondo (art. 1º, inc. V, da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990).

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