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sábado, 27 de agosto de 2011

Terminologia dos pressupostos das medidas cautelares penais. Uma visão crítica das posturas críticas

Com o devido respeito a parcela divergente da doutrina, considera-se que nada obsta o uso das expressões "fumus boni juris" e "periculum in mora" na seara criminal.

As cautelares processuais penais devem sempre estar ligadas a um caso concreto no qual estejam presentes os pressupostos cautelares gerais. Ensina a tradicional doutrina que tais pressupostos, comuns a todas as cautelares, são o "fumus boni juris" e o "periculum in mora". Em resumo, para o primeiro, se faz necessário, para a aplicação de uma cautelar, que haja indícios suficientes ou convincentes de autoria de uma infração penal, bem como esteja comprovada a existência de um crime. Já o "periculum in mora" descreve uma situação fática em que a atuação estatal repressiva deve ser de alguma forma, mais ou menos contundente, adiantada, visando preservar o interesse processual ou acautelar o meio social. Esses pressupostos comuns a todas as cautelares estão muito bem descritos na redação do artigo 312, CPP, versando sobre a Prisão Preventiva.
Segundo Câmara, esses pressupostos podem ser divididos em "probatórios" (indícios convincentes de autoria e prova do crime) e "cautelares" (interesse processual em sua imposição, por exemplo, para o bom andamento da instrução ou para assegurar a aplicação da lei penal). [01]
Nunca é demais relembrar que a exigência do "fumus boni juris" não deve ser confundida com "certeza" da autoria. Exige-se certeza quanto à existência de um crime, mas quanto à autoria bastam indícios convincentes. A exigência de certeza nessa fase não seria somente precipitada, mas uma verdadeira lesão ao Princípio da Presunção de Inocência. Portanto, o Juiz, ao fundamentar sua decisão quanto à autoria para a decretação de uma cautelar, jamais deve procurar demonstrar sua certeza quanto a ela. Assim agindo estaria perpetrando um pré – julgamento odioso em que a cautelar se transformaria em pena antecipada.
Neste ponto é interessante abordar uma discussão terminológica instalada no seio da doutrina. Alguns autores afirmam que as nomenclaturas "fumus boni juris" e "periculum in mora" seriam adequadas ao Processo Civil e não teriam cabimento no âmbito processual penal.

Lopes Júnior, por exemplo, manifesta sua discordância perante a doutrina tradicional. Aponta que essa doutrina é apoiada no escólio do autor italiano Calamandrei, cujo contributo para a ciência processual é imenso, mas afirma que o transporte de categorias da seara civil para a penal seria o problema impeditivo. [02] Prossegue, afirmando que seria impróprio falar-se em "fumus boni juris" ("fumaça do bom direito") na área criminal, pois, indaga: "Como se pode afirmar que o delito é a fumaça do bom direito? Ora, o delito é a negação do direito, sua antítese"! Para o autor, não seria requisito cautelar no Processo Penal "a probabilidade de existência do direito de acusação alegado, mas sim de um fato aparentemente punível". Assim sendo, propõe a expressão latina "fumus comissi delicti" como mais apropriada, já que indicaria a probabilidade da "ocorrência de um delito" ao reverso de um direito. No seguimento critica também a expressão "periculum im mora", sob o argumento de que no processo penal não há preocupação com a passagem do tempo e o prejuízo para os interesses em jogo, o que somente ocorre no campo cível. No Processo Penal o perigo estaria ligado tão somente à conduta do imputado com risco de fuga ou prejuízo probatório. Para Lopes Júnior, "o perigo não brota do lapso temporal entre o provimento cautelar e o definitivo. Não é o tempo que leva ao perecimento do objeto". Na verdade, o risco no bojo do Processo Criminal estaria conectado à liberdade do investigado ou acusado de modo que seria mais apropriada a expressão "periculum libertatis". [03]
Na mesma esteira situa-se Gomes, inclusive apoiando-se diretamente na opinião de Lopes Júnior:
"A velha doutrina processual penal, seguindo as clássicas lições de Calamandrei, afirma que toda medida cautelar tem que estar fundada em duas premissas: fumus boni juris e periculum in mora. Essa terminologia é adequada ao processo civil. Não corresponde em nada com as finalidades do processo penal". [04]
Anteriormente já havia na doutrina essa manifestação crítica por parte de Roberto Delmanto Júnior, o qual indicava o desajuste dos conceitos de "periculum in mora" e "fumus boni juris" na seara processual penal diante das peculiaridades ínsitas a este ramo do Direito. Da mesma forma propunha a substituição pelas expressões "fumus comissi delicti" e "periculum libertatis", apoiando-se nos ensinamentos dos autores italianos Giovanni Conso e Vittorio Grevi, assim como na doutrina nacional de Ada Pellegrini Grinover e Antonio Magalhães Gomes Filho. [05] Mais adiante em sua obra traz à baila os ensinamentos de Sérgio Marques de Moraes Pitombo, asseverando especificamente sobre o descabimento do "periculum in mora" no Processo Penal. Para o autor citado por Delmanto, esse conceito da processualística civil seria inadequado porque atrelado naquele campo "ao dano irreparável que a natural demora da prestação jurisdicional acarretaria, tornando o provimento jurisdicional praticamente ineficaz". Dessa forma, não se poderia, por exemplo, vincular a prisão do acusado ou investigado "à antecipação da prestação jurisdicional, sob pena de violação das garantias da desconsideração de prévia culpabilidade" (Presunção de Inocência). [06]
Com o devido respeito a essa parcela divergente da doutrina, considera-se que nada obsta o uso das expressões "fumus boni juris" e "periculum in mora" na seara criminal. Para além disso, tem-se que seriam até mesmo muito mais adequadas do que as inovadoras terminologias do "fumus comissi delicti" e do "periculum libertatis".
A crítica capitaneada modernamente por Lopes Júnior quanto ao "fumus boni juris" mediante a afirmação de que o crime seria uma negação do Direito e jamais poderia ser confundido com a "fumaça de um bom direito", tem a aparência enganadora e sedutora das retóricas, mas, na realidade sustenta-se sobre uma fragilidade argumentativa tremenda. Essa doutrina pretende convencer pela afirmação de que a "fumaça do bom direito" estaria ligada à conduta do agente, o que realmente tornaria absurdo seu uso no campo penal. Mas, na realidade, nem no campo penal, nem no cível, o "fumus boni juris" se refere à atuação do sujeito passivo da medida cautelar, à legalidade ou não de sua conduta e sim à probabilidade de existência do Direito pleiteado pelo requerente da medida cautelar. É isso que é necessário demonstrar para obter uma cautelar no campo civil ou no campo penal, jamais que o sujeito passivo da medida tenha agido de modo regular. Ora, se assim fosse não deveria sofrer qualquer tipo de constrição, seja na seara civil ou penal!
Há um evidente desvio no raciocínio que faz com que este se perca nas brumas da ilogicidade. Mas, a retórica com que é construído pode enganar a muitos e até ao próprio elaborador da teoria. No campo penal, obviamente, não se fala em "fumus boni juris" com relação à boa conduta, à conduta reta no Direito do suposto autor de um crime. Isso seria verdadeira insanidade! O "fumus boni juris" para fins de imposição de uma cautelar constritiva de direitos individuais logicamente se refere à existência, no caso concreto, de elementos mínimos de convencimento quanto à probabilidade futura de procedência de uma acusação. Assim também ocorre na seara civil, quanto à probabilidade mínima de procedência do interesse do autor. Também no campo cível não se baseia o "fumus boni juris" na conduta reta do sujeito passivo da medida. Será que alguém que não quita suas dívidas age de acordo com o Direito e quando tem contra si uma cautelar de busca e apreensão de um bem isso se dá porque se apura a "fumaça do bom direito" de seu agir? Não, muito ao contrário, o devedor contumaz comete um "ilícito civil", sem qualquer "fumaça de bom direito". Quem tem a "fumaça do bom direito" é o autor do pedido de busca e apreensão do bem. Parece que o ímpeto de demonstrar diferenças entre o campo civil e o penal (o que ademais não é novidade nenhuma) leva alguns a exagerarem nas construções críticas, até mesmo se esquecendo que assim como existe um "ilícito penal", existe um "ilícito civil".
Também não passa de um jogo de palavras a alegação de que "não seria requisito cautelar no Processo Penal ‘a probabilidade de existência do direito de acusação alegado, mas sim de um fato aparentemente punível’", propondo "a expressão latina ‘fumus comissi delicti’ como mais apropriada, já que indicaria a probabilidade da ‘ocorrência de um delito’ ao reverso de um direito". Qual seria afinal a diferença relevante entre "a probabilidade da existência de um direito de acusação" e "a probabilidade da existência de um fato aparentemente punível". Seria um erro pensar que uma coisa depende da outra e que na verdade formam um conjunto indissociável? Ora, se há a aparência de um fato punível, então necessariamente há a aparência de um direito de acusação! Se há a probabilidade de ocorrência de um delito, necessariamente há a probabilidade de um direito de punir ("jus puniendi")! A doutrina sob visão crítica é altamente tautológica!
Outra questão que parece passar despercebida pelos detratores da expressão "fumus boni juris" no Processo Penal é que nem todas as medidas cautelares referem-se a uma coação do investigado ou processado. Mesmo que se admitisse, "ad argumentadum tantum", que a "fumaça do bom direito" se referisse absurdamente à conduta do suposto infrator e então se pudesse aceitar as críticas de autores como Lopes Júnior e outros à expressão, como ficariam seus argumentos diante de cautelares que não se referem a constrições, mas sim a liberações do investigado ou processado? Será que se poderia utilizar a expressão unívoca do "fumus comissi delicti" para esses casos ligados diretamente à concretização da Presunção de Inocência no proceder processual e pré – processual?
É certo que alguns chamam tais medidas de "contra – cautelares", mas, na verdade, são espécies autônomas de cautelares apenas com finalidades diversas das constritivas. [07] Usando os exemplos da liberdade provisória a ser concedida para alguém preso em flagrante ou da revogação de uma prisão preventiva ou temporária. Como se poderia adequar a essa situação a expressão limitada do "fumus comissi delicti"? Essa expressão pode até ser aceitável para o decreto de cautelares limitativas dos direitos individuais, tais como prisões provisórias e outras, mas jamais para medidas liberatórias. Seria a "fumaça do cometimento de um delito" que levaria à concessão da liberdade provisória? Não parece que isso seja correto. É o respeito à Presunção de Inocência que justifica a regra da liberdade provisória no Processo Penal, exatamente pela presença do "fumus boni juris" reverso ao presente nas cautelares constritivas, qual seja, aquele de que o investigado ou réu pode ser inocente e, mais que isso, assim deve ser considerado até o trânsito em julgado de decisão condenatória. Eis a "fumaça do bom direito" com fulcro constitucional e principiológico, a qual jamais se adequaria à tão festejada expressão inovadora do "fumus comissi delicti". Portanto, o "fumus boni juris" ainda tem a vantagem de ser uma expressão mais abrangente e polimorfa, adequando-se a qualquer espécie cautelar, mediante um ajuste no raciocínio que deve guiar cada caso concreto. Já a expressão "fumus comissi delicti" é fechada em sua univocidade, inadmitindo uma variância semântica desejável a partir do fato de que as medidas cautelares são múltiplas em sua natureza ora constritiva ora liberatória.
Também com relação à expressão latina "periculum in mora" não há razão plausível para tanta confusão a ponto de fazer lembrar o título da festejada comédia de Shakespeare "Muito Barulho Por Nada".
Segundo alguns, no Processo Penal as providências cautelares não teriam por uma de suas motivações a natural demora nos trâmites processuais sob o risco de prejudicar a adequada prestação jurisdicional. Ou muito há de engano no pensamento que ora é defendido ou o Processo Penal sofre das mesmas agruras que o Processo Civil no que diz respeito à luta pela conjugação do binômio eficiência/agilidade. Tanto um processo penal como um civil muito rápido pode levar à injustiça da decisão. Assim também um processo muito lento pode conduzir ao mesmo caminho ou a inutilidade de uma decisão justa.
Ao que se saiba no Processo Penal Brasileiro e também em outras paragens não se vive num país das maravilhas quanto à rapidez das respostas jurisdicionais e nem isso é plenamente possível numa Justiça Temporal que depende de certo amadurecimento e de um procedimento cauteloso para a formulação de uma decisão que mais se aproxime do justo. Certo lapso temporal razoável entre o fato em apuração e a conclusão do processo com a formulação de um "decisum" é absolutamente necessário e nem sempre as circunstâncias que envolvem determinados casos concretos permitem a espera desse prazo para a tomada de algumas medidas urgentes (urgência ou preventividade é característica das cautelares em geral, tanto no Processo Civil, como no Penal).
Quando se propõe a expressão "Periculum libertatis" para substituir o "Periculum in mora" pretende-se com isso afastar a questão da demora, da urgência ou preventividade das cautelares no Processo Penal, o que parece insustentável. Novamente trata-se de uma manipulação de palavras. Afinal por que existiria um "Periculum libertatis" (perigo na liberdade exercida pelo réu ou indiciado), a não ser pelo fato de que a demora na tomada de uma medida para contê-lo de alguma forma, optando-se pela simples espera inerte do tempo do processo e da decisão definitiva, poderia produzir prejuízos probatórios, executórios ou no meio social? Não fosse por isso, seria certamente muito melhor abster-se de qualquer medida antecipada, aguardando calmamente e cautelosamente pelo desfecho processual em total respeito à Presunção de Inocência. Que perigo pode existir na liberdade do imputado se não atrelado a um possível prejuízo decorrente da mora processual? Se não há urgência ou preventividade, característica comum a toda cautelar, não há necessidade de qualquer provimento dessa espécie. É incrível que autores que primam por uma visão garantista do Processo Penal não enxerguem o absurdo que seria sustentar o mero "Periculum Libertatis" apartado do "Periculum in mora"!
Quando Delmanto cita Pitombo asseverando que esse conceito do "Periculum in mora" da processualística civil seria inadequado porque atrelado naquele campo "ao dano irreparável que a natural demora da prestação jurisdicional acarretaria, tornando o provimento jurisdicional praticamente ineficaz", não sendo possível, por exemplo, vincular a prisão do acusado ou investigado "à antecipação da prestação jurisdicional, sob pena de violação das garantias da desconsideração de prévia culpabilidade", fica nítida uma distorção que consiste na insistência em desconsiderar a problemática da temporalidade no Processo Penal sem qualquer sustentação prática, bem como a conexão espúria e falseada entre o reconhecimento da urgência ou preventividade no campo penal e a suposta violação do Princípio da Presunção de Inocência. Assim como no campo civil a concessão de uma liminar ou de uma medida cautelar não significa um pré – julgamento da questão conflituosa, também na seara penal a adoção de uma medida cautelar não significa, como é de conhecimento vulgar, uma decisão condenatória e nem mesmo absolutória. Será que uma Prisão Preventiva significa que o réu será condenado? Ou a concessão de liberdade provisória já dá a entender que ele será ao final absolvido?
Para a concessão de cautelares é sim necessário um juízo de probabilidade quanto ao futuro do processo. Mais uma vez insista-se, um juízo de probabilidade e não de certeza, nunca de certeza. Isso sim (um juízo de certeza nessa fase precária) configuraria uma violação à Presunção de Inocência. Mas, isso nada tem a ver com o reconhecimento de que a demora natural do Processo Penal (como também o é na seara civil) pode sim acarretar danos à futura (provável e não certa) execução de uma pena em perspectiva; pode também acarretar danos irreparáveis à instrução criminal, sendo necessária a adoção de medidas de urgência para muitas vezes conter o suposto (note-se, "suposto") criminoso. Essas são medidas instrumentais que fazem adiantar certos provimentos porque a dinâmica dos fatos pode frequentemente ultrapassar a dinâmica do processo, seja ele civil ou penal. Se houver a pretensão de esperar o provimento jurisdicional definitivo de um réu que está fugindo para o exterior a fim de encarcerá-lo, tal provimento será inútil sim, tão inútil quanto a entrega de um bem deteriorado a quem o pleiteia no campo civil. Mas, afirmar isso não seria violar a Presunção de Inocência, mediante a alegação de que haveria a imposição provisória da pena? Claro que não! A medida cautelar da Prisão Preventiva "in casu" é imposta com base na simples probabilidade e não na certeza. Isso é comezinho no campo das cautelares penais. Entre respeitar a Presunção de Inocência e advogar por uma Justiça cega, impotente ou ingênua permeia uma grande distância.
Além disso, novamente parece que os críticos do "Periculum in mora" olvidam a existência de cautelares liberatórias, tal como a Liberdade Provisória. Pergunta-se: como se poderia adequar a expressão "Periculum Libertatis" a uma decisão judicial de concessão de Liberdade Provisória? Devido ao perigo existente na manutenção do réu ou indiciado em liberdade o Juiz o colocaria em liberdade? Não é preciso insistir na teratologia dessa afirmação!
Por que será que os juízes colocam as pessoas em regra em liberdade durante os processos criminais? A resposta é mais que óbvia até mesmo para um iniciante nos estudos do Direito. Trata-se da aplicação do Princípio da Presunção de Inocência. Não é coerente com esse princípio que alguém considerado inocente até prova em contrário seja mantido no cárcere até que se tome uma decisão definitiva. E o que permeia essa questão entre mantê-lo encarcerado ou liberá-lo para responder ao processo em liberdade? Obviamente que é a questão do tempo do processo! Nada mais cristalino do que a constatação de que é preciso soltar o mais rapidamente possível àquele que é acobertado pela Presunção de Inocência. Aliás, é nesse sentido que se procederam a recentes reformas, obrigando mais claramente o Juiz a analisar a necessidade de manter o encarceramento em casos de flagrante, convertendo-o em preventiva ou desde logo conceder a liberdade provisória com ou sem fiança (vide artigo 310, CPP com a nova redação dada pela Lei 12.403/11). É claro que não se trata aqui de nenhum "Periculum Libertatis" e sim muito obviamente do tradicional "Periculum in mora". Ou será que em respeito à Presunção de Inocência deveríamos manter o réu preso até sua absolvição, desprezando a questão da temporalidade no Processo Penal como parecem querer alguns.
Novamente, tal qual ocorreu com o "fumus boni juris", a expressão "Periculum in mora" é polimorfa e adaptável a todas as situações de urgência que envolvem as cautelares penais, sejam elas constritivas ou liberatórias. De outra banda, a expressão "Periculum Libertatis" sofre de pobreza semântica que a impede de ser utilizada em todos os casos.
É interessante observar como uma suposta visão crítica das expressões em estudo se agiganta embora nitidamente não dotada de sustentação apta a superar a mera retórica. A crítica da tradição é importante, não somente no mundo jurídico, mas em todas as áreas. É por intermédio da crítica que se renovam os conceitos e que a criatividade brota aperfeiçoando a ciência, a sociedade e os indivíduos. Mas, a crítica pela crítica, ancorada em argumentos meramente retóricos pelo simples prazer de romper de alguma forma com a tradição e não de aprender com ela, deve ser rechaçada com veemência.

Ação penal de iniciativa pública incondicionada

Ação penal de iniciativa pública é aquela em que o titular da ação penal é o Ministério Público, em caráter privativo, a teor do art. 129, inciso I, da Constituição Federal/88. Incondicionada é aquela modalidade de ação penal de iniciativa pública que independe da vontade da vítima para que o fato tido por delituoso seja processado e julgado. Assim, a par do interesse da vítima, o acusado será processado penalmente e ao final julgado. Não se discute aqui, então, o desejo da vítima na punição ou não do agente do crime. Logo, ação penal de iniciativa pública incondicionada é a ação promovida pelo Ministério Público sem que se indague ímpeto da vítima em ver processado e julgado o fato que violou seu bem jurídico tutelado pelo direito penal (vida, patrimônio, saúde etc).
Ao abordar os princípios da ação penal pública incondicionada, assevera o Eugênio Pacelli [01] que o princípio da obrigatoriedade nesse tipo de ação resulta do dever estatal da persecução penal e do consequente dever, como regra, de o Ministério Público promover a ação penal se estiver diante de fato que considere ilícito penal. Adverte ainda que a obrigatoriedade da ação penal diz respeito somente à ausência de discricionariedade quanto à conveniência e oportunidade da propositura da ação penal se constatada a presença de ação delituosa e satisfeitas as condições da ação.
Na mesma obra o autor levanta a questão sobre a obrigatoriedade de o Ministério Público oferecer denúncia quando evidente a presença de excludente de ilicitude. Entende que não está o Parquet obrigado a oferecer denúncia se as provas produzidas em sede de inquérito policial, ou mesmo nas peças de informação, sem a participação da defesa, portanto, são robustas no sentido da excludente de ilicitude. [02]
Contudo, esclarece que tal linha de pensamento não seria aceita pelos que excluem a culpabilidade como elemento do crime, ao lado da tipicidade e da ilicitude, devido ao fato de não considerarem a culpabilidade como elemento do crime. Assim, para os adeptos dessa corrente, a denúncia seria obrigatória.

Alerta, todavia, que a questão está longe de ser pacificada e apresenta as ponderações feitas, "todas no sentido da exigência de oferecimento da denúncia" [04]:
a)a coleta de material probatório na fase de investigação, por mais completa que seja, não se realiza perante o juiz, daí por que o seu exame por ocasião do requerimento de arquivamento não oferece a mesma amplitude da fase judicial de absolvição sumária;
b)o pedido de arquivamento poderia atingir também o interesse do ofendido ou de seus sucessores, que, no curso da ação penal, poderiam contribuir decisivamente na produção de prova da inexistência das excludentes;
c)poder-se-ia, ainda, partindo das primeiras observações, argumentar que somente a prova jurisdicionalizada – ou seja, com a participação efetiva do Juiz na formação da verdade, no exercício, também, de seu livre convencimento – poderia afastar a competência do Tribunal do Júri;
d)a decisão judicial de arquivamento de inquérito não tem a mesma eficácia preclusiva daquela de absolvição sumária, permitindo a nova iniciativa persecutória se motivada na existência de prova nova.
Apesar dos argumentos acima Eugênio Pacelli entende que o Ministério Público não é obrigado a oferecer denúncia em casos tais. Para tanto ventila a inutilidade do inquérito policial, das peças de informação e do processo penal no caso, além do constrangimento a que estará submetido o acusado, bem como o perigo de se levar a decisão para os jurados em razão do fato da decisium deles não ser motivada. [05]
Outra questão relevante e que toca o princípio da obrigatoriedade da ação penal incondicionada é a disposta no artigo 76 da Lei n. 9.099/1995, a denominada transação penal. A doutrina convencionou chamar esse fato de discricionariedade regrada.
Ao versar sobre o tema, Eugênio Pacelli afirma que não há se falar em discricionariedade regrada, mas sim em mitigação do princípio da obrigatoriedade em "relação à exigência de propositura imediata da ação". Deve o Ministério Público primeiro oferecer a transação penal nos casos em que ela caiba, para somente após, e se frustrada esta, propor a ação penal. Igualmente, entende que a expressão regrada acrescida do termo discricionariedade desnatura este conceito, conforme sua definição em direito administrativo. [06]
Mougenot Bonfim também entende que houve mitigação do princípio da obrigatoriedade pelo mencionado dispositivo legal da Lei dos Juizados Especiais, mas trata da previsão, por este dispositivo, do princípio da discricionariedade regrada ou disponibilidade temperada, no que diverge de Pacelli. [07]
Nucci ressalva que, mesmo nos casos em que há transação penal, há exercício do direito de ação, pois o Estado satisfaz o seu direito de punir apesar de não o exercer por meio da ação. Isso porque a punição se dará em outros moldes. [08]
Como se percebe, a questão não é pacífica e o consenso está longe de ser alcançado. Entretanto, de suma relevância trazer a lume o entendimento de Rogerio Schietti, eminente membro do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - ex-Procurador-Geral de Justiça desta instituição, pois o pensamento por ele desenvolvido é singular.
Entende Schietti [09] que:
O uso de tal expressão [discricionariedade regrada] pode ser equívoco na medida em que transmite a idéia de que o Ministério Público pode deixar de postular o exercício do ius puniendi do Estado, na forma e nas hipóteses reguladas em lei, mesmo se presentes as condições para a ação penal.
Mais adiante o autor aduz que não há discricionariedade regulada (ou regrada) no direito processual penal, ainda que sob a égide da Lei nº 9.099/1995, pois [10]:
Não permite a lei brasileira que o Ministério Público arquive o inquérito policial por mera conveniência institucional, o que seria a consagração do princípio da oportunidade pura, tal qual ocorre nos EUA. Também não permite a nossa lei que o membro do Parquet arquive o inquérito policial, presentes certas circunstâncias autorizadoras previstas em lei, tais como reparação do dano, culpa diminuta e condições subjetivas favoráveis do agente (conforme prevê o art. 75 do CPP português), o que seria adotar, aí sim, o princípio da oportunidade regrada (grifos originais).
Enquanto isso, Antonio Fernandes Scarance aduz a dicotomia princípio da obrigatoriedade oportunidade da ação penal e entende que deve prevalecer o princípio da obrigatoriedade. Todavia, ressalta que, diante do aumento populacional e do consequente incremento da criminalidade, é impossível o processo e julgamento de todos os crimes, razão pela qual "há de se admitir no plano geral certa discricionariedade de atuação do órgão acusatório, principalmente em infrações mais leves ou em determinadas situações concretas onde não há maior interesse em punir". [11]
O mesmo autor trata de outro tema de certa relevância em processo penal e igualmente sem entendimento pacífico na doutrina pátria. Ressalta que a ação popular foi prevista pela Medida Provisória n. 153, de 15/3/1990, para a punição de crimes de abuso de poder econômico caso o Ministério Público não oferecesse a denúncia no prazo legal. Todavia ação penal popular não se manteve no ordenamento jurídico pátrio [12]. Já Mougenot Bonfim [13] defende a sua existência por vislumbrar, pelo critério da legitimidade ativa, que estaria essa modalidade de ação em um terceiro gênero.
Em tempo, vale destacar que, no que toca à ação penal nos crimes complexos, a doutrina entende que o artigo 101 do Código Penal é inócuo e de difícil interpretação, pois a definição cabe ao que dispõe a lei, ou seja, quando a lei não confere a iniciativa ao ofendido, por exclusão, a ação é pública, segundo Mirabete [14], pensamento com o qual concordamos.
Questão que causa debates os mais diversos e está longe de ser pacificada é a que se refere à ação penal dos crimes de responsabilidade. Eugênio Pacelli diz que os crimes de responsabilidade não são crimes propriamente ditos, portanto, não têm relevância penal. Os seus julgamentos são políticos e feitos por órgãos políticos. Por essa razão entende que não há que se falar em titularidade privativa do Ministério Público para ajuizar ação penal para a investigação desses crimes, que na realidade, rigorosamente, não são processados por ação penal, "ainda que a CF/88 faça referência a crimes de responsabilidade". [15]
Os crimes de responsabilidade, a nosso ver, não são crimes propriamente ditos, o que faz com que a titularidade da ação penal não seja privativa do Ministério Público, tudo consoante lição de Eugênio Pacelli anteriormente ventilada.
Além do princípio da obrigatoriedade, há, segundo a doutrina de Marcellus Polastri os princípios da: i) oficialidade, que se refere ao fato de que "a repressão aos crimes cabe ao Estado, e este fará a persecução criminal através de órgãos oficiais"; ii) indivisibilidade, que é princípio geral do processo penal e que só foi mencionado para o caso da queixa, para deixar claro que o querelante não tem poder de escolha contra quem e qual crime ele irá ajuizar a ação penal privada, ou seja, ou ele ajuíza contra todos os ofensores e por todos os crimes ou contra nenhum; e iii) intranscendência, que consistente no fato de somente poder ser ajuizada a ação penal em face da pessoa do criminoso [16]. No mesmo sentido, Mougenot Bonfim. [17]
A obrigatoriedade, como dito alhures, se refere à ausência de conveniência e oportunidade do Parquet de propor a ação penal quando preenchidos todos os requisitos legais, mormente os do artigo 41 do Código de Processo Penal. Entretanto, o Ministério Público não é obrigado a oferecer denúncia quando estiver presente de modo claro causa excludente da ilicitude, pois há, nesse caso, nítida inutilidade de eventual processo penal, bem como imposição de constrangimento ilegal à pessoa do denunciado.
É bem verdade que a ação penal de iniciativa pública incondicionada deve ser proposta por um órgão oficial do Estado, que, nesse caso, é o Ministério Público, pois cabe ao Estado o jus puniendi e o jus persequendi. Tal é o princípio da oficialidade.
Do mesmo modo, em obediência ao princípio da intranscendência, a ação penal de iniciativa pública incondicionada deve ser intentada em face da pessoa a quem se imputa o fato delituoso, e não sobre seus parentes ou quaisquer outros que relação alguma guarde com o fato.
Ademais disso a ação penal de iniciativa pública incondicionada é indivisível, pois deve o Ministério Público propô-la em face de todos os envolvidos (réu, corréu, partícipe) incursos em todos os fatos típicos presentes. Não tem o Órgão Ministeriala discricionariedade de escolher quem e quais fatos denunciar.
Por fim, além dos princípios já tratados, a ação penal de iniciativa pública incondicionada é regida também pelo princípio da indisponibilidade, que é princípio lógico decorrente da obrigatoriedade, afinal, se o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia nos casos de ação penal pública incondicionada, é igualmente obrigado a persistir na ação penal intentada, não podendo dela dispor ao seu alvedrio, conforme a sua discricionariedade.

Embriaguez e imputabilidade penal

Embriaguez e criminalidade.

É estreito o laço existente entre o consumo de álcool e a prática de delitos. Não que aquele seja a causa única e principal da criminalidade. Mas os efeitos do etanol têm o condão de aumentar as estatísticas de práticas de atos que atentem contra os valores mais caros da vida em comum.

Por outro lado, os problemas advindos do abuso do álcool também acompanham-no desde o início de sua história.
Se gregos e romanos, v.g., apreciavam o vinho e a cerveja, também censuraram a embriaguez. Da mesma forma, a Bíblia nos traz a história da embriaguez de Noé (Gênesis, 9:20-27). Por esse ou por outros motivos, durante a Idade Média o alcoolismo era condenado pela Igreja (HISTÓRIA DO ÁLCOOL).
A embriaguez é definida como a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool.
Agudo, para a medicina, diz-se da doença de curso grave e rápido (RIOS, 2007, p. 359). Portanto, a embriaguez é uma intoxicação intensa, cujos efeitos são passageiros.
A embriaguez manifesta-se em três fases, as quais, entretanto, não contam com limites precisos entre si.
Na fase da excitação, caracterizada por um afrouxamento dos freios morais, a pessoa ainda tem consciência, mas apresenta diminuição da capacidade de autocrítica e julgamento, vivacidade motora, desinibição, euforia e loquacidade (ou tristeza, noutros casos), lentidão nos reflexos e baixa capacidade de concentração. Os principais sinais clínicos são dilatação das pupilas, umidificação da pele e aceleração da respiração e do pulso (FRANÇA, 1978, p. 3; JESUS, 2003, p. 509; SILVA, 2004, p. 56).
Na segunda fase, a da depressão ou da confusão, o ébrio pode sofrer falta de coordenação motora, confusão mental, irritabilidade, disartria (voz pastosa, dificuldade para articular as palavras), visão dupla, zumbido nos ouvidos, comprometimento na memória e até mesmo ilusões. Andar em linha reta ou permanecer em pé, equilibrado, de olhos fechados, são tarefas deveras difíceis. É normalmente na fase da confusão que o bêbado apresenta as maiores inconveniências de atitude, porque a debilidade em sua autocrítica é mais acentuada. A embriaguez já é completa: a autocensura, os freios morais e a liberdade de consciência e vontade são inexistentes (FRANÇA, 1978, p. 3; JESUS, 2003, p. 509; SILVA, 2004, p. 57).
Por fim, a fase do sono ou da letargia é marcada por um estado de anestesia que pode tomar maiores ou menores proporções. A pressão arterial e a temperatura corporal caem sensivelmente, a pele empalidece, as pupilas ficam contraídas, a respiração e a pulsação diminuem, os reflexos são totalmente abolidos. Podem ocorrer desmaios, sono profundo ou total inconsciência. Em alguns casos, pode culminar em coma ou mesmo morte (FRANÇA, 1978, p. 3; JESUS, 2003, p. 509).
Assim, a par de sua licitude, os transtornos causados hodiernamente pelo álcool são grandes, como bem destacou Haroldo Caetano da Silva:
[...] sendo o álcool uma droga historicamente consumida e o seu uso um hábito socialmente aceito, inclusive estimulado por criativos meios de publicidade por todos os mass media – diversamente do que ocorre com outras drogas, cujo comércio e consumo configura prática ilícita – é muito freqüente o vício do alcoolismo, a ponto de tornar-se "um dos problemas mais inquietantes que se apresentam atualmente em todos os países civilizados", verdadeiro problema de saúde pública, com reflexos nefastos para aquele que ingere a bebida alcoólica, e também com conseqüências outras, não menos graves, de caráter social, econômico e jurídico (SILVA, 2004, p. 41, grifo do autor).
Na embriaguez, "soltam-se progressivamente os impulsos recalcados, livres graças ao entorpecimento das inibições morais" (FRANÇA, 1978, p. 3).
Destarte, embora não seja a única causa do problema da criminalidade, a embriaguez é uma relevante mola propulsora a impulsioná-la.
E sendo o crime um elemento patogênico ao corpo social, o Estado, valendo-se das normas penais, não podia deixar de se preocupar com o problema da embriaguez e com as mudanças comportamentais dela decorrentes.
Eis o motivo pelo qual o direito, enquanto regulador das condutas humanas, e principalmente o direito penal, como tutelar dos valores mais importantes do convívio social, tratou logo de cuidar do fenômeno da embriaguez. E a legislação brasileira o fez em três aspectos: a) estatuindo, no art. 28, inciso II, do Código Penal, que a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos, não exclui a imputabilidade; b) agravando a pena quando o crime for praticado em estado de embriaguez preordenada (art. 61, inciso II, alínea a, do Código Penal); e c) tipificando condutas (v.g., art. 306, do Código de Trânsito Brasileiro e art. 62, da Lei das Contravenções Penais).
Desta feita, estuda-se aqui o tratamento penal da embriaguez, sendo dedicada maior atenção ao ponto que parece ser o de maior relevância (do ponto de vista dos princípios que norteiam o direito penal): a correlação entre esta, enquanto fenômeno apto a turvar a capacidade de compreensão e de determinação do indivíduo, e a imputabilidade penal.

2. A importância dos princípios constitucionais no Estado Democrático de Direito.

O convívio em sociedade é inerente à natureza humana. Desde que o homo sapiens surgiu na Terra ele procurou agregar-se a seus pares, de modo a melhor poder enfrentar a luta pela sobrevivência.
Entretanto, a vivência em comum traz também, inevitavelmente, o conflito, motivo pelo qual se tornou necessário o surgimento de um poder que organizasse os grupos sociais.
Assim, temos que o direito surgiu com o papel de garantir a atuação e a prevalência desse poder, o qual tem por missão satisfazer interesses maiores da coletividade.
Entretanto, a existência de um poder, que se traduz na distinção entre governantes e governados, traz em seu cerne o problema do abuso do poder:
[...] toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa estrutura, se "controla" socialmente a conduta dos homens [...].
Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual, logicamente, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização. Há sociedades com centralização e marginalização extremas, e outras em que o fenômeno se apresenta mais atenuado, mas em toda sociedade há centralização e marginalização do poder (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 56, grifo do autor).
Por esse motivo, se a princípio o direito nasceu com o objetivo acima explanado, é certo que a partir de determinado momento foi necessária sua atuação no sentido contrário, ou seja, colocando limitações no poder e inibindo a arbitrariedade no seu exercício.
É dentro desse contexto que surge a oportunidade do estudo dos direitos fundamentais, conceituados por Luiz Alberto David Araújo como "[...] a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as dimensões" (ARAÚJO, 2005, p. 109).
O estudo da evolução histórica dos direitos fundamentais mostra que, a princípio, eles constituíam uma limitação ao poder estatal.
Com efeito, os primeiros direitos fundamentais, classificados pela doutrina como direitos de primeira geração, tiveram como principais fatores históricos determinantes os excessos do Absolutismo e as aspirações da burguesia à época da Revolução Francesa. Também eram conhecidos como direitos individuais, direitos civis, direitos políticos ou liberdades públicas. Eles "[...] definiam a fronteira entre o que era lícito e o que não era para o Estado, reconhecendo liberdades para os cidadãos" (BREGA FILHO, 2002, p. 21-22, grifo nosso, passim).
Entretanto, a partir da Revolução Industrial, que culminou no surgimento de uma classe proletária flagelada por muitos problemas sociais, verificou-se que não adiantava o Estado apenas resguardar os direitos individuais, se os cidadãos não dispunham de condições – notadamente materiais – para seu exercício. Esse terreno permitiu o surgimento dos chamados direitos fundamentais de segunda geração. Assim, "foram definidos e assegurados os direitos sociais, econômicos e culturais [...]", consistentes em prestações estatais concretas, como assistência social, moradia, saúde, lazer, educação, trabalho, segurança, entre outras, visando "[...] garantir condições sociais razoáveis a todos os homens para o exercício dos direitos individuais" (BREGA FILHO, 2002, p. 22-23, grifo nosso, passim).
Por outro lado, as barbáries verificadas durante a Segunda Guerra Mundial culminaram na compreensão da existência de valores transcendentais, que interessam a todo o gênero humano e não apenas a cada indivíduo. São os direitos fundamentais de terceira geração, também chamados de direitos de solidariedade ou de fraternidade, que se caracterizam por sua titularidade coletiva: o direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente equilibrado, à comunicação, ao patrimônio comum da humanidade entre outros.
Em resumo, "os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo [...]" (BONAVIDES, 2000, p. 517).
Segundo Hesse, citado por Paulo Bonavides, os direitos fundamentais almejam "criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana" (BONAVIDES, 2000, p. 514).
Tanto é assim que nossa Constituição previu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Fundamento significa base, alicerce. Assim, num Estado Democrático de Direito, o ser humano e sua dignidade constituem os valores supremos que devem informar toda a ordem normativa.
E, uma vez destacada a importância dos direitos fundamentais, cabe ressaltar o papel dos princípios jurídicos, com destaque para os princípios constitucionais.
A noção de princípio jurídico foi bem delineada por Celso Antonio Bandeira de Mello:
Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo (MELLO, 2006, p. 902-903, grifo nosso).
Eles formam, portanto, o arcabouço da ordem jurídica, cabendo a eles o papel de estruturação de todo o sistema.
Assim, ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais foram positivados nas Constituições, estas também trataram de erigir as normas que guardam os valores essenciais da ordem jurídica à categoria de princípios constitucionais.
No campo do direito penal, os princípios constitucionais ganham especial importância:
Os princípios encontram-se para a legislação penal e seus institutos como as fundações para a edificação: conformam e sustentam o que sobre eles é erigido, de modo que a retirada de qualquer dos alicerces ou a efetivação da obra fora dos padrões estabelecidos, implicará o comprometimento de toda a construção. (SANTORO FILHO, 2000, p. 68).
Essa importância se confirma pelo simples fato de o direito penal ser o ramo da ciência jurídica encarregado de tutelar diretamente os valores mais importantes do organismo social.
Com efeito, se o crime é a mais grave espécie de ilícito jurídico, a sanção penal é a mais severa punição utilizada pelo Estado para reprimir as transgressões às suas leis. Justamente por isso, um Estado Democrático de Direito não pode sacrificar arbitrariamente o ius libertatis de seus membros.
No Estado Democrático de Direito, os princípios penais fundamentais, além dessa função sistematizadora do direito criminal têm também, como finalidades essenciais, a garantia do ser humano contra a ingerência demasiada do Estado nas relações sociais, através do direito penal, e a limitação à exacerbação do poder punitivo. (SANTORO FILHO, 2000, p. 69).
Destarte, destacado que o direito tem por função regular as condutas humanas para preservar a integridade do corpo social, cumpre agora analisar mais pormenorizadamente o que seja o direito penal e quais os fins a que ele se propõe, bem como os princípios que o norteiam.a

3. Direito penal: conceito, objetivos e princípios.

Num primeiro momento, o direito penal pode ser entendido como um conjunto de normas jurídicas estabelecidas pelo Estado, cuja finalidade é combater o crime e, dessa maneira, defender os bens jurídicos mais valiosos ao convívio social.
Analisando alguns dos bens jurídicos protegidos pelas normas penais, como, por exemplo, a vida, a saúde, a honra, a propriedade entre outros, veremos que muitos se tratam de direitos fundamentais. No escólio de José Frederico Marques, a Constituição Federal tutela os direitos fundamentais do homem. E essa proteção é reforçada pelas leis penais, "[...] aparecendo então o caráter sancionador do direito penal, como complemento enérgico e mais forte da tutela constitucional" (MARQUES, 1954, p. 38).
De outro tanto, José Frederico Marques definiu o direito penal como:
"[...] o conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade das medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado" (1954, p. 11, grifo nosso).
Vê-se, pois, que o direito penal não se limita a definir crimes e cominar penas.
A partir da prática, em tese, de um fato tido como delituoso, surge uma relação jurídica que contrapõe, de um lado, o ius libertatis do pretenso criminoso (que também é um direito fundamental) e o ius punitionis do Estado. Assim, também se faz necessário que o direito penal tutele o direito de liberdade em face do poder de punir do Estado, de forma a evitar os abusos.
Há, portanto, um "direito individual de liberdade em matéria penal", que consiste, como dizia Rocco, na "faculdade, que tem o cidadão, de agir nos limites daquela esfera de atividade que os preceitos penais nada lha impõem nem proíbem, e de impedir dentro dela, a indébita intromissão dos órgãos do poder punitivo do Estado" (MARQUES, 1954, p. 122).
E é justamente neste ponto que entram em cena os princípios constitucionais, já que, "[...] no Estado de direito, o poder soberano não age na conformidade de seu arbítrio, mas subordinado a normas e princípios jurídicos" (MARQUES, 1954, p. 10-11).
Pode-se apontar, pois, dois objetivos para o direito penal: de um lado, reprimir a criminalidade e proteger os bens jurídicos mais importantes contra as agressões mais graves; de outro, diametralmente oposto, evitar o abuso estatal e proteger os direitos do indigitado autor de um crime.
Após as considerações ora delineadas, o momento mostra-se oportuno para o estudo de dois dos mais importantes princípios sobre os quais se assenta o direito penal.
3.1. Princípio do nullum crimen sine conducta.
O crime é sempre uma conduta humana, positiva ou negativa (ação ou omissão). Daí dizer-se que não há crime sem conduta: nullum crimen sine conducta.
Três teorias buscaram explicar a conduta: a teoria causal da ação, a teoria social da ação e a teoria finalista da ação.
Segundo a teoria causalista ou naturalista da ação, também conhecida por teoria tradicional, clássica ou causal-naturalista, "conduta é a causação de modificação no mundo exterior por um comportamento humano voluntário, no qual é irrelevante ou prescindível o fim a que se dirige" (SILVA, 2004, p. 20).
Para a teoria em comento, a conduta é estranha a qualquer valoração normativa ou social:
Nessa teoria a conduta é concebida como um simples comportamento, sem apreciação sobre a sua ilicitude ou reprovabilidade. É denominada naturalista ou naturalística porque incorpora as leis da natureza do Direito Penal. Nos termos dessa teoria, a conduta é um puro fator de causalidade. Daí também chamar-se causal. Para ela a conduta é o efeito da vontade e a causa do resultado. Tudo gira em torno do nexo de causalidade: vontade, conduta e resultado (JESUS, 2003, p. 230).
Para os causalistas, o fim da conduta deve ser apreciado na culpabilidade, como elemento desta (MIRABETE, 2004, p. 102).
A teoria causal levava à perplexidade. Em primeiro lugar, diante dela, não havia diferença entre um crime doloso e um culposo, visto que em ambos o resultado é idêntico. Em verdade, é o desvalor da ação, e não o desvalor do resultado, que faz com que um crime doloso seja apenado mais severamente que um culposo (JESUS, 2003, p. 233).
Ademais, ela também não explica a tipicidade a contento em certos delitos nos quais a vontade do agente e a finalidade da ação fazem parte da própria descrição do crime (MIRABETE, 2004, p. 102).
Diante de todas essas imperfeições, o causalismo não é mais aceito.
Conforme a teoria social, ação é "a conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana" (MIRABETE, 2004, p. 103).
Essa teoria compreendeu que um conceito tão importante como o da ação, produtor de relevantes efeitos na estrutura do delito, não podia atender exclusivamente a princípios fundamentados nas leis da natureza. Diante disso, reconheceu a necessidade de situar o problema numa relação valorativa com o mundo social. O conceito de ação, tratando-se de um comportamento praticado no meio social, deve ser valorado por padrões sociais. (JESUS, 2003, p. 232-233).
Sobre a necessidade de relevância social da ação para ela revestir-se de tipicidade penal, explica-se:
Se um pugilista fere seu adversário porque quer feri-lo, mas não atua em função de menosprezo à integridade física deste, o significado de sua ação é positivo. O cirurgião que faz uma incisão no paciente quer curá-lo, quer que ele se recupere. Nessas hipóteses, embora ocorram lesões no corpo do adversário e do paciente, não há ação típica de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, que constitui, em tese, o crime de lesões corporais. A ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo porque se realiza dentro do âmbito de normalidade social (MIRABETE, 2004, p. 103).
A teoria social não escapou de críticas, principalmente diante da incerteza que paira na determinação do que seja a relevância social da conduta:
As críticas feitas a essa teoria residem na dificuldade de conceituar-se o que seja relevância social da conduta, pois tal exigiria um juízo de valor, ético. Tratar-se-ia de um critério vago e impreciso que, inclusive, influiria nos limites da antijuridicidade, tornando também indeterminada a tipicidade (MIRABETE, 2004, p. 103).
Segundo Zaffaroni e Pierangeli, tentou-se sustentar que a relevância social se identifica com o interagir humano. Nesse sentido, interessariam ao direito penal apenas as ações que transcendessem o âmbito individual do agente, atingindo terceiros de maneira lesiva (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 366).
Entretanto, como os mencionados autores bem destacaram, essa é uma questão de tipicidade, e não de determinação do conceito de conduta:
[...] o requisito da relevância social, entendida como a necessidade de que a conduta transcenda da esfera meramente individual do autor para a do outro, é um requisito de tipicidade penal da conduta, mas não da conduta em si, que é conduta, embora não transcenda a ninguém. As ações puramente privadas, que não transcendem para ninguém (e que o direito não pode proibir) também são "ações".
[...]
[...] As condutas não se tornam "condutas" por estarem proibidas e sim, melhor dizendo, estão proibidas – entre outras coisas – por serem condutas (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 367-368, passim).
Além disso, Damásio Evangelista de Jesus apresenta os seguintes óbices à adoção da teoria social:
Em primeiro lugar, ela não deixa de ser causal, merecendo os mesmos reparos que a doutrina fez à teoria mecanicista: não resolve satisfatoriamente o problema da tentativa e do crime omissivo. Por outro lado, se a ação é a causação de um resultado socialmente importante, como se define a conduta nos crimes de mero comportamento?
Essa teoria, como a causal propriamente dita, dá muita importância ao desvalor do resultado, quando o que importa é o desvalor da conduta. Se a ação é a causação de um resultado socialmente relevante, então não há diferença entre uma conduta de homicídio doloso e um comportamento de homicídio culposo, já que o resultado é idêntico nos dois casos (JESUS, 2003, p. 233).
Face os inconvenientes que revestem as concepções anteriormente apresentadas, hodiernamente a doutrina prefere a teoria finalista da ação.
"Para a teoria finalista da ação (ou da ação finalista), como todo comportamento do homem tem uma finalidade, a conduta é uma atividade final humana e não um comportamento simplesmente causal" (MIRABETE, 2004, p. 104).
Para o finalismo, conduta é "a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade" (JESUS, 2003, p. 227, grifo do autor).
A ação é uma atividade final humana. Partindo disso, Welzel afirma que a ação humana é o exercício da atividade finalista. É, portanto, um acontecimento finalista, e não somente causal. A finalidade, diz ele, ou atividade finalista da ação, baseia-se em que o homem, consciente dos efeitos causais do acontecimento, pode prever as conseqüências de sua conduta, propondo, dessa forma, objetivos de distinta índole. Conhecendo a teoria da causa e efeito, tem condições de dirigir sua atividade no sentido de produzir determinados efeitos. A causalidade, pelo contrário, não se encontra ordenada dessa maneira. Ela é cega, enquanto a finalidade é vidente (JESUS, 2003, p. 234).
"Em suma, a vontade constitui elemento indispensável à ação típica de qualquer crime, sendo seu próprio cerne" (MIRABETE, 2004, p. 103).
Se A mata B, não se pode dizer de imediato que praticou um fato típico (homicídio), embora essa descrição esteja no art. 121 do CP ("matar alguém"). Isto porque o simples fato de causar o resultado (morte) não basta para preencher o tipo penal objetivo. É indispensável que se indague do conteúdo da vontade do autor do fato, ou seja, o fim que estava contido na ação, já que a ação não pode ser compreendida sem que se considere a vontade do agente. Toda ação consciente é dirigida pela consciência do que se quer e pela decisão de querer realizá-la, ou seja, pela vontade (MIRABETE, 2004, p. 139-140).
A teoria finalista da ação, destarte, diferencia o fato natural da ação humana. Enquanto o primeiro é, de fato, causal, "[...] a ação humana é um acontecimento dirigido pela vontade consciente do fim. Daí a comparação ilustrativa de Welzel, para quem a finalidade é vidente, e a causalidade, cega" (SILVA, 2004, p. 23, grifo do autor).
Explicado o que é a conduta, passa-se à verificação de seus elementos e de suas formas.
A conduta é composta primeiramente por uma vontade. Depois, pela atuação externa dessa vontade. Com efeito, da mesma forma que não há conduta nas ações despidas de intervenção da vontade do agente, como nos casos de coação física irresistível, inconsciência ou atos reflexos; o direito penal também não se preocupa da atividade meramente psíquica ou de cogitação.
A conduta humana pode manifestar-se de duas formas. Geralmente, ela consubstancia-se numa ação, ou seja, num fazer, num agir positivo, num movimento corpóreo, enfim, num comportamento ativo, caracterizando os chamados crimes comissivos.
Entretanto, a omissão, a inatividade, a ausência de movimento, também pode ser penalmente relevante. Isso ocorre quando a agente tinha o dever jurídico de agir e não o faz, praticando um crime omissivo.
3.2. Princípio do nullum crimen sine culpa.
A exigência da existência de culpa como pressuposto e medida da pena é um dos principais valores do direito penal hodierno.
Francisco de Assis Toledo aponta que no cotidiano a palavra culpa é frequentemente utilizada "para a imputação a alguém de um fato condenável", adquirindo na linguagem coloquial "um sentido de atribuição censurável, a alguém, de um fato ou acontecimento", sendo que seu significado jurídico não é muito diferente (TOLEDO, 1994, p. 216, passim).
A exigência de que o injusto seja reprovável ao seu autor para que haja sanção repousa na capacidade de autodeterminação do ser humano.
De fato, nos primeiros tempos do direito penal, a sanção criminal foi criada como instrumento de intimidação dos indivíduos, com a promessa de um mal para aqueles que praticassem as condutas indesejadas.
Todavia, em períodos mais remotos a responsabilidade penal era objetiva, ou seja, só interessava o nexo de causalidade entre o fato exterior danoso e o agente. "Desconsiderava-se a existência de alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato causado e o agente" (SILVA, 2003, p. 33).
Em dado momento histórico, porém, compreendeu-se que a função intimidatória da pena deve estar correlacionada com a evitabilidade do fato: só se pode intimidar uma pessoa se ela puder prever e querer os acontecimentos, cabendo a ela a escolha voluntária entre praticar o crime ou evitá-lo (TOLEDO, 1994, p. 218-219). Nas palavras de Julio Fabbrini Mirabete, "a intimidação é apenas eventualmente eficiente quando se ameaça o homem com pena pelo que fez (e poderia não ter feito) ou pelo que não fez (mas poderia fazer), evitando a lesão a um bem jurídico" (MIRABETE, 2004, p. 195).
Em resumo, o princípio da culpabilidade "[...] implica que não há delito se o injusto não é reprovável ao autor" (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 449). Ele reflete a execração da responsabilidade objetiva, ou seja, a "sujeição de alguém à imposição de pena sem que tenha agido com dolo ou culpa ou sem que tenha ficado demonstrada sua culpabilidade [...]" (JESUS, 2003, p. 457).
A demonstração da culpabilidade é, pois, "condição indeclinável para a imposição da pena (MIRABETE, 2004, p. 198).
Realmente, o repúdio à responsabilidade penal objetiva mostra a preocupação que o Estado Democrático de Direito tem com os direitos fundamentais de seus cidadãos (notadamente no que diz respeito ao direito de liberdade). De nada adiantaria afirmar que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei se as pessoas pudessem ser alvo da sanção penal pela simples existência de nexo de causalidade entre sua conduta e um evento danoso.
Nesse sentido, o reconhecimento de que a punição deve pressupor a reprovabilidade do fato ao seu autor constitui um dos principais pilares sobre o qual se assenta a ciência penal.
A culpabilidade tem diversas particularidades, cuja análise agora se pretende.
Em linhas simples, ela consiste na "reprovabilidade ou censurabilidade de conduta" (MIRABETE, 2004, p. 97). Entretanto, uma conceituação mais precisa depende de uma escolha face às três principais teorias elaboradas para explicá-la.
Para a teoria psicológica a culpabilidade não passa da ligação psicológica entre o fato e seu autor. O dolo e a culpa são espécies da culpabilidade. No crime doloso há, por parte do agente, voluntariedade e previsão do evento e seu resultado. No crime culposo há previsibilidade, mas não voluntariedade. Disso, decorrem duas conclusões: a culpabilidade está situada no psiquismo do autor do delito, e se divide em dolo e culpa stricto sensu (TOLEDO, 1994, p. 219-222; JESUS, 2003, p. 460).
Mas a concepção psicológica da culpabilidade mostrou-se insuficiente para resolver todos os problemas que envolvem a questão.
Na culpa consciente, por exemplo, não há qualquer ligação psicológica entre o agente e o fato. Quem dirige veículo automotor em alta velocidade por uma rua completamente deserta sabe que age imprudentemente, mas não crê no surgimento inopinado de algum transeunte, que venha a ser atropelado (TOLEDO, 1994, p. 222-223).
Ademais, enquanto o dolo tem natureza psicológica, a culpa é necessariamente normativa, baseada numa avaliação axiológica da conduta. Dolo e culpa, como fenômenos tão distintos, não podem ser considerados espécies do mesmo gênero (JESUS, 2003, p. 460).
Com base nisso surgiram duas novas teorias que introduziram no conceito da culpabilidade um elemento normativo: a reprovabilidade do fato praticado.
Para a teoria psicológico-normativa, ou complexa, o dolo e a culpa stricto sensu não são espécies da culpabilidade, mas elementos dela. A culpabilidade, pois, é um juízo de reprovação que se emite a respeito do fato; e compõe-se de: dolo ou culpa stricto sensu, imputabilidade (capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento) e exigibilidade de conduta conforme o direito. Está situada, portanto, na cabeça do julgador que emite o referido juízo valorativo da conduta (TOLEDO, 1994, p. 222-224; JESUS, 2003, p. 460-461).
A teoria psicológio-normativa, contudo, também se revelou inadequada.
Welzel apontou que o dolo e a culpa stricto sensu fazem parte da conduta humana, e não do juízo de culpabilidade. Portanto, estão localizados no tipo penal, já que este nada mais é que a descrição da ação proibida. Tanto é assim que a maioria dos crimes previstos em lei são dolosos, apenas admitindo-se a punição a título de culpa quando houver outra tipificação expressa também em Lei (Código Penal, art. 18, parágrafo único). Quando a lei penal prevê somente a modalidade dolosa do crime, a ausência do dolo não afasta a culpabilidade, mas torna o fato atípico (TOLEDO, 1994, p. 228 e 230, passim).
Destarte, a teoria normativa pura parece ser a mais apta a explicar o que seja e onde se localiza a culpabilidade.
Para a teoria normativa o dolo e a culpa pertencem à conduta, e não à culpabilidade. Segundo Mirabete, "o que se elimina com a exclusão do dolo é a própria existência do fato típico [se não prevista modalidade culposa] e não a mera culpabilidade pelo fato que o sujeito praticou" (MIRABETE, 2004, p. 196).
Damásio Evangelista de Jesus, por sua vez, explica:
[...] somente após a análise do conteúdo da vontade é que posso afirmar que houve determinado tipo penal. Em face disso, a vontade final, isto é, o dolo, faz parte do tipo.
[...]
Em conseqüência, o dolo é retirado da culpabilidade, não constituindo espécie (teoria psicológica) ou elemento da culpabilidade (teoria psicológico-normativa), mas elemento subjetivo do tipo, integrando a conduta, primeiro elemento do fato típico (JESUS, 2003, p. 235-236).
Para a teoria normativa pura, portanto, a culpabilidade continua sendo um juízo de reprovação localizado na cabeça do julgador, mas seus elementos são a imputabilidade, a consciência potencial da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Assim, ela passa a ser composta apenas por juízos de valor, expurgada de todos os fatores psicológicos e limitando-se à pura reprovabilidade (JESUS, 2003, p. 461-462; ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 520).
No presente momento, se faz oportuna a advertência de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, de que hoje, adotada a teoria normativa o princípio da culpabilidade se decompõe em dois níveis:
O princípio de culpabilidade, em sua formulação mais simples, diz que "não há delito sem culpabilidade". No tempo em que se sustentava a teoria complexa da culpabilidade, isto é, em que a culpabilidade era entendida como reprovabilidade, mas nela incluídos também o dolo e a culpa, esta fórmula breve expressava a necessidade de que no delito houvesse, ao menos, culpa, e, além disto, que o injusto fosse reprovável ao autor.
Dentro da concepção por nós sustentada, em que a culpa não faz parte da culpabilidade, mas configura uma estrutura típica, aquilo que antes se chamava "princípio de culpabilidade" representa duas exigências que devem ser analisadas separadamente, em dois níveis distintos: a) na tipicidade, implica a necessidade de que a conduta – para ser típica – deva ao menos ser culposa; b) na culpabilidade, implica que não há delito se o injusto não é reprovável ao autor (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 449).
Destarte, é mais correto afirmar que, na verdade, "[...] não há pena se a conduta não for reprovável ao autor" (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 522, grifo nosso).
O Código Penal prevê as seguintes hipóteses de exclusão da culpabilidade: erro de proibição (art. 21, caput, e art. 20, § 1º), coação moral irresistível (art. 22, 1ª parte), obediência hierárquica (art. 22, 2ª parte) e inimputabilidade (que pode decorrer de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior, nos termos dos artigos 26 a 28 do Código Penal).
Essas causas estão relacionadas com os elementos da culpabilidade. O erro de proibição exclui a potencial consciência da ilicitude. A coação moral irresistível e a obediência hierárquica afastam a exigibilidade de conduta diversa. A doença mental, o desenvolvimento mental incompleto (incluindo-se aqui, por presunção legal, conforme o art. 27 do Código Penal, os menores de dezoito anos) o desenvolvimento mental retardado e a embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, afastam a capacidade de querer e de entender do agente e, portanto, a imputabilidade (Código Penal, art. 26, caput; e art. 28, § 1º).
As hipóteses de exclusão da culpabilidade pela inimputabilidade são as mais importantes para o presente trabalho.
A primeira hipótese de inimputabilidade prevista no Código Penal é aquela decorrente de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, caput).
A expressão doença mental é a mais ampla possível. Inclui psicoses como demência senil, esquizofrenia, loucura etc.
O desenvolvimento mental incompleto é aquele que ainda não se concluiu. É o caso dos menores de dezoito anos e dos silvícolas inadaptados.
Para os primeiros, excepcionalmente, nossa legislação adotou o critério biológico. Por mais que um adolescente tenha plena consciência de seus atos e saiba discernir o certo do errado, a Constituição Federal (art. 228) e o Código Penal (art. 27) presumem, de maneira absoluta, sua inimputabilidade. Essa presunção favorece mesmo um menor emancipado.
Por último temos a escassez de desenvolvimento mental, que se verifica nos oligofrênicos e em alguns casos de surdo-mudez que chegam a diminuir ou afastar a capacidade intelectiva e de autodeterminação.
Por outro lado, "é princípio de Psiquiatria que entre a saúde e a anormalidade psíquica não se pode traçar uma linha precisa de demarcação" (JESUS, 2003, p. 502).
Dessa maneira, "entre a imputabilidade e a inimputabilidade existe um estado intermédio com reflexos na culpabilidade e, por conseqüência, na responsabilidade do agente" (JESUS, 2003, p. 502).
Outrossim, o Código Penal, em seu art. 26, parágrafo único, prevê que nas hipóteses menos graves de perturbação da saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que não retirem do sujeito toda a capacidade intelectiva ou volitiva, a culpabilidade é apenas diminuída, e não afastada de todo (JESUS, 2003, p. 502-503).
É o que ocorre, de maneira geral, nos casos mais benignos de doenças e debilidades mentais, bem como em determinados estados psíquicos decorrentes de estados fisiológicos especiais (gravidez, puerpério etc.) (JESUS, 2003, p. 502).
A imputabilidade subsiste e o agente é condenado, mas ou a pena será reduzida de um a dois terços, podendo ainda o autor do fato ser submetido a medida de segurança (artigos 26, parágrafo único, e 98, do Código Penal). A redução de pena é obrigatória. "A expressão ‘pode’ diz respeito ao quantum da redução, não à própria causa de diminuição" (JESUS, 2003, p. 504).
É no campo da imputabilidade que se situa o principal ponto de contato entre o problema da embriaguez e o direito penal.
Conforme disposto no art. 28 do Código Penal, a emoção, a paixão e a embriaguez voluntária ou culposa não excluem a imputabilidade, ao passo que a embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, o faz.
Por outro lado, "a dificuldade maior em qualquer tentativa de punição do crime do ébrio (que atua em estado de inimputabilidade) é conciliá-la com o princípio nullum crimen sine culpa (que pressupõe imputabilidade)" (SILVA, 2004, p. 38).
A actio libera in causa, como se verá, desloca o fundamento da culpabilidade do agente para um momento anterior à auto-provocação do estado de inimputabilidade (e, portanto, anterior mesmo à ação).

Lei dos crimes contra a dignidade sexual: mais benéfica?

A Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, que introduziu importantes modificações na legislação penal, trouxe em seu texto controvérsia, no que diz respeito à classificação das condutas que passaram a ser previstas na redação do art. 213 do Código Penal.
In verbis:
"Estupro 
Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: 
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos."
Com efeito, um único tipo penal passou a incorporar condutas autônomas, que antes eram conhecidas como "estupro" (art. 213) e "atentado violento ao pudor" (art. 214, ambos do mesmo Código Repressor).
Portanto, resta saber se foi simplesmente revogado o crime de atentado violento ao pudor, sendo, por conseguinte, a nova redação legal mais benéfica, aplicável a todos os casos, mesmo os já transitados em julgado.
Isso porque, apressadamente, boa parte da doutrina e jurisprudência já sustenta que, em razão na nova redação do tipo penal, há crime único, encerrando maiores debates quanto às modalidades de concurso de crimes. A propósito, ver a Apelação Criminal n° 2009.038539-0, julgada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina [01].
Entretanto, a fim de dirimir a questão, em primeiro lugar, é necessário conceituar que a referida legislação é, ao menos em tese, mais gravosa, pois resultado da conhecida "CPI da Pedofilia". Por outro lado, também a indicar essa tendência, está o fato de que tais crimes, antes tidos como contra os costumes, passaram a ser contra a dignidade sexual.
Acerca da nova redação do Título VI do Código Penal, Guilherme de Souza Nucci observa que:
"Dignidade fornece a noção de decência, compostura, respeitabilidade, enfim, algo vinculado à honra. A sua associação ao termo sexual insere-a no contexto dos atos tendentes à satisfação da sensualidade ou da volúpia. Considerando-se o direito à intimidade, à vida privada e à honra, constitucionalmente assegurados (art. 5º, X, CF), além do que a atividade sexual é, não somente um prazer material, mas uma necessidade fisiológica para muitos, possui pertinência a tutela penal da dignidade sexual. Em outros termos, busca-se proteger a respeitabilidade do ser humano em matéria sexual, garantindo-lhe a liberdade de escolha e opção nesse cenário, sem qualquer forma de exploração, especialmente quando envolver formas de violência."
Nesse contexto já parece evidente que, a pretexto de tratar mais rigorosamente a gestão, é impróprio conceber que tenha sido operada verdadeira abolitio criminis.
De fato, o fenômeno de fusão dos antigos tipos penais em um único artigo de lei é o que a doutrina denomina "continuidade normativo-típica". Assim, o que era proibido antes continua proibido na nova Lei, apesar das alterações, como esclarecem Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:
"Revogação de lei e não ocorrência da abolitio criminis: mas não se pode nunca confundir a mera revogação formal de uma lei penal com a abolitio crimins. A revogação da lei anterior é necessária para o processo da abolitiocriminis, porém, não suficiente. Além da revogação formal impõe-se verificar se o conteúdo normativo revogado não foi (ao mesmo tempo) preservado em (ou deslocado para) outro dispositivo legal.
Logo, nessa hipótese, não se deu a abolitio criminis, porque houve uma continuidade normativo-típica (o tipo penal não desapareceu, apenas mudou de lugar). Para a abolitio criminis, como se vê, não basta a revogação da lei anterior, impõe-se sempre verificar se presente (ou não) a continuidade normativo-típica."
Sendo assim, a atual figura do art. 213 do Código Penal reúne dois tipos antes distintos e que, hoje, ainda não se confundem, diferindo o constranger alguém à conjunção carnal, do constranger alguém a outro ato de penetração diverso – sexo oral ou anal, por exemplo.
Como se vê, o que antes, sob o nomem iuris "estupro" contemplava apenas uma única espécie de vítima – a mulher – e um único ato lascivo – a conjunção carnal –, agora, mas ainda sob a rubrica do mesmo nomem iuris, passou a abarcar vítimas de sexos distintos – masculino e feminino – e outras condutas além da conjunção carnal – prática de ato libidinoso diverso.
E a compreensão de que o estupro adquiriu uma outra hipótese de tipificação induz a mais uma conclusão, de que se está diante, agora, de um "tipo misto cumulativo", dada a possibilidade que estabeleceu a nova redação do tipo penal do artigo 213 do Código Penal, de violação do bem jurídico tutelado pela norma penal – a dignidade sexual – por meio de condutas distintas e autônomas.
A propósito, robusta corrente jurisprudencial, na linha dos seguintes julgados do egrégio Superior Tribunal de Justiça, a quem a Constituição Federal conferiu o dever de unificar a interpretação da legislação federal:
"(...) ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. INCIDÊNCIA DA LEI 12.015/09. INADMISSIBILIDADE DA HIPÓTESE DE CRIME ÚNICO. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA. 1. A apreensão e a perícia da arma utilizada no crime de roubo, quando impossível, não afasta a incidência da causa especial de aumento de pena, mormente quando a prova testemunhal é firme sobre sua efetiva utilização durante a prática da conduta criminosa. Precedentes do STJ e STF. 2. Com relação à incidência da Lei 12.015/09, esta Corte já se posicionou pela não ocorrência de crime único ou em absorção de um tipo pelo outro. 3. Opina o MPF pela denegação da ordem. 4. Ordem denegada." [02]
"HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONDENAÇÃO PELOS CRIMES EM CONCURSO MATERIAL. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N.º 12.015/2009. REUNIÃO DE AMBAS FIGURAS DELITIVAS EM UM ÚNICO CRIME. TIPO MISTO CUMULATIVO. CUMULAÇÃO DAS PENAS. INOCORRÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. (...) 3. Se, durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente, ocorreu mais de uma conjunção carnal caracteriza-se o crime continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de uma repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal. Ou seja, a nova redação do art. 213 do Código Penal absorve o ato libidinoso em progressão ao estupro – classificável como praeludia coiti – e não o ato libidinoso autônomo, como o coito anal e o sexo oral. (...)" [03]
Por outro lado, é sabido que, como muito bem anotado por Rogério Greco, "Foi adotado, portanto, pela legislação penal brasileira, o sistema restrito no que diz respeito à interpretação da expressão conjunção carnal, repelindo-se o sistema amplo, que compreende a cópula anal, ou mesmo o sistema amplíssimo, que inclui, ainda, os atos de felação (orais)", mesmo após a edição da referida Lei.
Vale dizer, em consequência, que se cuida de injustos de gravidade progressiva, até mesmo em razão das consequências advindas da prática dos diferentes atos libidinosos (gênero), do qual a penetração vaginal e a demais formas de relação sexual são espécies distintas.
Nesses contornos, quanto à interpretação profunda e adequada que convém ser adotada no caso, talvez a percepção de Vicente Greco Filho seja a que mais se afigure ideal:
"A interpretação que se está querendo intrujar é a de que, tendo sido revogado o art. 214, deixou de existir o crime de atentado violento ao pudor a lei é mais branda e, portanto, retroage para beneficiar os condenados por atentado violento ao pudor em concurso com o estupro para que se entenda que o crime é único, de estupro, ainda que mais de uma agressão sexual à mesma vítima tenha sido praticada em momentos diferentes e sob diversas formas. O estupro na forma de conjunção carnal absorveria as demais condutas.
[...]
Se, durante o cativeiro, houve mais de uma vez a conjunção carnal pode estar caracterizado o crime continuado entre essas condutas; se, além da conjunção carnal houve outro ato libidinoso, como os citados, coito anal, penetração de objetos, etc., cada um desses caracteriza crime diferente cuja pena será cumulativamente aplicada ao bloco formado pelas conjunções carnais.
A situação em face do atual art. 213 é a mesma do que na vigências dos antigos 213 e 214, ou seja, a cumulação de crimes e penas se afere da mesma maneira, se entre eles há, ou não, relação de causalidade ou consequencialidade. Não é porque os tipos agora estão fundidos formalmente em um único artigo que a situação mudou. O que o estupro mediante conjunção carnal absorve é o ato libidinoso em progressão àquela e não o ato libidinoso autônomo e independente dela, como no exemplo referido.
Não houve, pois, abolitio criminis, ou a instituição de crime único quando as condutas são diversas. Em outras palavras, nada mudou para beneficiar o condenado cuja situação de fato levou à condenação pelo art. 213 e art. 214 cumulativamente; agora, seria condenado também cumulativamente à primeira parte do art. 213 e à segunda parte do mesmo artigo.
Por todos esses argumentos e em respeito ao espírito da lei e à dignidade da pessoa humana, essa é a única interpretação possível, eis que, inclusive, respeita a proporcionalidade. Não teria cabimento aplicar-se a pena de um único estupro isolado se o fato implicou na prática de mais de um e de mais de uma de suas modalidades, a conjunção carnal e outros atos libidinosos autônomos." [04]
Não se trata, então, de crime de ação múltipla ou conteúdo variável, pois não se estabelece mais de um núcleo do tipo (como no caso do tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da Lei n° 11.343/06), limitando-o apenas ao verbo "constranger". O que varia é o complemento verbal, que não integra o núcleo do tipo e pode, portanto, ser duplo, ensejando a caracterização de dois crimes distintos.
Mormente nos casos em que, à luz do modus operandi empregado pelo abusador, resta evidenciado que as ações foram motivadas por desígnios autônomos.
E como se não bastasse, é totalmente pertinente, por fim, a advertência presente no Parecer n. 005/2009/CCR, elaborado pelo competente Centro de Apoio Operacional Criminal – MP/SC, lembrando que, caso seja reconhecida a unidade pretendida, será efetivado verdadeiro incentivo a essa modalidade abjeta de crime:
"Na prática, ocorrerá o seguinte: se o agente constranger a vítima e com ela praticar algum ato libidinoso (como, por exemplo, apalpadelas lascivas), pode também praticar conjunção carnal sem cometer outro crime. Ou seja, praticando um dos atos criminosos, o autor terá acesso livre para cometer outra figura típica sem ser punido por ela, resultando apenas em fixação da pena base (artigo 59 do Código Penal) de forma distinta." [05]
A tese da dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais já foi objeto de interessante estudo de Luciano Feldens [06].
Conclui-se, pois, que é inviável sustentar a hipótese de crime único, em razão da nova redação do art. 213 do Código Penal, dada pela Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, uma vez que, nesse caso, estão em colisão a proporcionalidade (proibição de excesso e proibição de proteção deficiente) e a garantia fundamental à segurança pública, que inspira as referidas restrições constitucionais relacionadas à prática do delito em comento, tido como hediondo (art. 1º, inc. V, da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990).

Transtorno de personalidade antissocial e criminalidade: pena ou tratamento?

No capítulo da Psicopatologia, um transtorno se destaca pelas implicações que pode suscitar no campo da ciência jurídico-penal. Trata-se do transtorno de personalidade antissocial (TPAS), cuja característica fundamental é a existência de um padrão invasivo de desconsideração e violação aos direitos alheios. Esse transtorno tem início na infância ou adolescência e continua ao longo da vida adulta.
O aspecto central do transtorno de personalidade antissocial envolve a capacidade de envolver outras pessoas em engodos e manipulações, e se manifesta a partir de um padrão de comportamento típico, caracterizado pela repetição e persistência de violação aos direitos de outras pessoas ou de regras sociais importantes, que, no mais das vezes, incluem desde a agressão a pessoas ou animais, até a destruição de propriedade, furtos, e outros comportamentos desviantes.
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), o padrão de comportamento antissocial persiste ao longo da vida adulta e os indivíduos portadores desse transtorno não conseguem se conformar às regras e normas pertinentes ao comportamento dentro de parâmetros legais. Aponta-se como sintoma mais importante do Transtorno de Personalidade Antissocial a completa ausência de ansiedade ou sua manutenção em baixos níveis a partir de uma estratégia de evitação ou controle dessa ansiedade ou de culpa. Em razão dessa característica, os indivíduos com este transtorno tendem a ser impulsivos e passam a ter atitudes temerárias, além de um padrão de intolerância à frustração que, por sua vez, determina um padrão de agressão reativa. Além disso, costumam ser rotuladas como hedonistas, apresentam superficialidade de sentimentos e carência de apegos emocionais a outras pessoas. Não obstante este elenco de sintomas de humor, apresentam-se bastante inteligentes e mantêm habilidades verbais e sociais bem desenvolvidas. Do ponto de vista cognitivo, a principal observação a ser é feita é que "a maioria das pessoas com Transtorno de Personalidade Antissocial parece incapaz de beneficiar-se de punição" (HOLMES, 1999). Quando são punidas, a punição não parece exercer nenhum efeito, independentemente de sua severidade. Outro sintoma que merece destaque é o comportamento voltado à busca de sensações e, não raro, portadores do transtorno de personalidade antissocial envolvem-se em atividades ilícitas sem que haja um fim a atingir, agindo mais pela "aventura" que por um propósito determinado. Não é difícil vislumbrar que tais comportamentos determinam prejuízos emocionais e materiais a outras pessoas, na vida em sociedade.
Transpondo a problemática do transtorno de personalidade antissocial ao campo jurídico, a questão que se impõe refere-se a qual tratamento deve-se dispensar ao portador de tal transtorno autor de ilícito penal, porquanto se é certo que se o mesmo, nessas circunstâncias, parece comportar-se dentro dos padrões do que se convencionou chamar de normalidade, não é menos certo que seu comportamento é significativamente condicionado pela sua patologia psiquiátrica. O impasse ganha contornos interessantes se se cogita acerca de sua imputabilidade penal.
O artigo 26 do Código Penal determina que é isento de pena o agente que é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de comportar-se conforme tal entendimento, em razão de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado. É preciso, pois, especular acerca do que a lei considera como doença mental. Delmanto (2002), afirma que a expressão inclui as moléstias mentais de qualquer origem. Na mesma linha de raciocínio, Mirabete (2001), afirma que a expressão inclui todas as alterações mórbidas à saúde mental, desde as de origem orgânica, às tóxicas ou funcionais. De igual modo, Damásio de Jesus (1999), assevera que em se tratando de um pressuposto biológico da inimputabilidade, a expressão abrange diversos transtornos, aos quais definiu de maneira igualmente ampla, como psicoses, esquizofrenia, loucura, histeria, paranoia. A partir dessas considerações, não parece pairar dúvidas de que o Transtorno de Personalidade Antissocial estaria incluído no âmbito da expressão "doença mental", embora não haja uma certa alienação mental que talvez seja concebida ao se falar em doença mental, assim como não seja tão evidente as manifestações da patologia, porquanto a sintomatologia do transtorno já envolve comportamentos transgressores, costumeiramente confundidos com o comportamento puramente criminoso, isto é, sem o componente patológico determinante. Nessa perspectiva, o agente antissocial seria inimputável, ou, pelo menos semi-imputável.
De outro lado, é necessário salientar que o agente portador de transtorno de personalidade antissocial não perde a capacidade de compreensão do caráter ilícito de determinado comportamento transgressor. Todavia, por apresentar um comportamento impulsivo, é possível conjeturar acerca da impossibilidade que essas pessoas apresentam de comportar-se segundo esse entendimento. De qualquer forma, estaria incluído na regra da inimputabilidade penal (ou semi-imputabilidade) estampada no artigo 26 (ou no seu parágrafo único) do Código Penal, sendo possível raciocinar acerca da sujeição do agente nessas condições a uma medida de segurança.
Há, portanto, três possibilidades de enquadramento do portador de Transtorno de Personalidade Antissocial: considerá-lo inimputável, portanto, sujeito a uma medida de segurança; considera-lo semi-imputável, reduzindo-se a pena aplicada de um a dois terços, a teor do parágrafo único do artigo 26 do Código Penal; ou considerá-lo imputável e, portanto, plenamente capaz de suportar uma sanção corporal. Vejamos cada uma das possibilidades.
Considerando-o enquanto inimputável, é necessário ponderar que as medidas de segurança diferenciam-se das penas em razão de sua finalidade, destinando-se à cura ou tratamento do inimputável autor de ilícito penal. O ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê duas espécies de medidas de segurança, conforme determinação do artigo 96 do estatuto penal, quais sejam, a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e a sujeição a tratamento ambulatorial, cuja aplicação de uma ou de outra espécie vincula-se à espécie de pena que seria imposta.
A partir da edição da lei nº 10.216/2001, que programou a reforma psiquiátrica brasileira, a aplicação da internação compulsória em hospitais de tratamento e custódia passou a ser (ou pelo menos deveria ser) a exceção, de rara aplicação, enfatizando métodos não asilares de tratamento de pacientes psiquiátricos. Assim sendo, não é absurdo pensar que o tratamento a ser dispensado neste caso seria exatamente pautado na perspectiva trilhada pela reforma psiquiátrica. Mas, a aplicação de uma sanção terapêutica importaria na cura ou adaptação do doente?
Há uma tendência em se considerar que as pessoas com Transtorno de Personalidade Antissocial são difíceis ou impossíveis de tratar. Haveria pouca ou nenhuma responsividade ao tratamento. Parece que o melhor a fazer é esperar que o transtorno se desgaste ao longo da vida, o que, conforme se observa na literatura especializada, ocorre por volta dos 30 a 40 anos de idade.
Considerando-se a imputabilidade penal do portador de Transtorno de Personalidade Antissocial autor de ilícito penal, naturalmente tem-se como resposta estatal ao seu comportamento desajustado a aplicação de uma pena. Aliás, em razão das dificuldades em se diagnosticar o transtorno, os portadores tendem a ser muito mais punidos. No entanto, a pena aparentemente possui um caráter de inadequação, pois não viabiliza a readaptação do doente. Assim sendo, as penas mostram-se ineficientes, sobretudo quando se reflete acerca das condições do sistema carcerário da atualidade, o que poderia contribuir para maior degenerescência e deformação da personalidade do agente.
Por fim, é possível enxergar o portador de TPAS sob o prisma da semi-imputabilidade. Conforme os dispositivos legais relativos à matéria, o acusado, nessas condições, seria julgado e, uma vez condenado, contaria com uma redução em sua pena variando de um a dois terços. Observe-se que o indivíduo continuaria a ser sujeito de uma pena corporal, embora diminuída em seu quantum. Assim sendo, a crítica que se pode fazer é a mesma da situação anterior. A única diferença seria em razão do lapso temporal, que, nesse caso, seria menor.
A dúvida persiste. E parece de difícil equacionamento. Porém, a temática não deixa de ser um campo ideal de diálogo entre as ciências jurídicas e as ciências da mente, para responder a demanda relativa a uma nova forma de considerar o homem em sofrimento, mais compatível com sua complexidade.

A necessidade de nova perspectiva penal no concernente a fraude contra seguros

É inegável a importância das operações de seguros, as quais estão disseminadas por quase todo mundo. Ademais, tratando-se de atividade de caráter financeiro, diretamente relacionada com os aspectos econômicos de cada nação, não houve solução mais acertada do que cingi-las pela proteção legal. Suas peculiaridades acabaram exigindo a formulação de dispositivos específicos, bem como, a criação de órgãos dotados, cada vez mais, de subsídios técnicos para a administração e fiscalização dessas atividades.
 
A evolução dessas transações obrigou necessariamente que a legislação deixasse seu estado de inércia, passando atender às novas aspirações e conjunturas contratuais.
 
Nesse diapasão, o Código Civil de 1916 trazia em seu bojo, no concernente aos negócios jurídicos emanados das relações contratuais, o respeito a diversos princípios, cabendo, no presente trabalho, ressaltarmos a boa-fé.
 
À época da vigência da avoenga legislação, a boa-fé estava restrita às intenções emanadas pelas partes da relação contratual e ao cumprimento rigoroso das cláusulas estipuladas. Conseqüentemente, sendo lícito, determinado ou determinável o objeto, bem como, respeitadas as formalidades legais, o negócio jurídico se resolvia. Se persistisse alguma pendência que provocasse a intervenção do Judiciário, bastava ao Juiz analisar os elementos da relação jurídica (o sujeito, o objeto e o fato propulsor) e as cláusulas propostas; nesse contexto, acabava o Magistrado por abstrair o câncer contratual, extirpando-o.
 
As decisões dimanadas pela Justiça eram quase que matemáticas, restringindo-se principalmente aos elementos e dispositivos contratuais. Assim, se A contratava com B, existindo cláusula impositiva de multa para a rescisão, aquele que não observasse algum dispositivo, dissolvia a relação, devendo pagar a multa estipulada; de certa forma, restava resolvido o negócio.
 
A promulgação da Constituição Federal de 1988 trouxe preocupações acirradas no concernente aos princípios democráticos, bem como à função dos diversos institutos do Direito. Apesar de mantido respeito à liberdade das relações particulares, estas passaram a ficar sujeitas a deificação, de certa forma apologética, da função social. Obviamente, não restaram excluídas as relações contratuais.
 
A consolidação desse princípio veio com a Lei nº 10.406/2002, que instituiu o Novo Código Civil. A partir de então, fora dada conotação mais ampla aos princípios fundamentais dos contratos, dos quais ressaltamos a função social, exarado no artigo 421.
 
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
 
Dessa forma, os interesses individuais das partes passaram a estar diretamente condicionados aos interesses sociais. A liberdade existente nas relações contratuais fora acondicionada pelos interesses coletivos, ficando impedida de sublevar-se.
 
Trazendo à tona exemplo semelhante ao acima mencionado, imaginemos a seguinte situação: A, indivíduo muito conhecido do público, firma contrato publicitário com B, no sentido de promover determinado produto; em certo momento surge C, concorrente de B, oferecendo a A otriplo do valor pago, além do pagamento da multa pela rescisão; diante da oferta, A rescinde com B.
 
Se analisássemos a questão acima sugerida à luz do antigo Código Civil, de certa forma a relação jurídica estaria resolvida com o pagamento da multa; esta, por sua vez, seria a paga pelo rompimento da relação contratual.
 
Sob o amparo da Nova Lei, a solução seria diversa. Atentando que a função social do contrato é princípio fundamental, o mero pagamento da multa não elidiria com perfeição o negócio jurídico. Quando A cede à oferta de C, concorrente de B, transgride a confiança nele depositada, corrompendo a boa-fé. Ora, sendo as relações contratuais a base para a realização dos mais variados negócios jurídicos, a destruição da confiabilidade afeta o instituto contratual como um todo, denegrindo o seu significado jurídico, de amparo, de garantia.
 
Ainda nesse sentido, em nome da função social do contrato, entendemos que B estaria absolutamente amparado em promover ação contra A, pela quebra da confiabilidade, e contra C, pela deslealdade comercial.
 
Conforme já afirmamos acima, a função social é princípio erigido pela Constituição Federal, o que impõe o seu respeito a todas as demais espécies normativas.
 
A função social e a lei penal
 
O Código Penal, ao fixar os tipos penais e respectivas sanções, urge no sentido de prevenir e remediar a prática de ilícitos, objetivando a estabilidade e tranqüilidade social.
 
Outrossim, dentre as tipificações nele exaradas, encontramos dispositivo diretamente relacionado ao seguro, no que concerne aos atentados à lisura contratual. Vejamos.
 
Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
............................................
§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:
............................................
Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro;
............................................
 
Em breve análise da norma, observamos que o caput do artigo se refere ao crime patrimonial praticado por qualquer pessoa física que realize a conduta típica; a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo. Já no pólo passivo temos a pessoa física ou jurídica. O elemento subjetivo do tipo é o dolo (gewinnsüchtige Absicht), isto é, a vontade livre e consciente de praticar qualquer dos verbos constantes da conduta. Não há a modalidade culposa, ou seja, cometida em razão de negligência, imprudência ou imperícia.
 
A sanção aplicada varia de um a cinco anos e multa. Dessa forma, sendo primário o condenado, certamente será agraciado com a possibilidade da suspensão condicional do processo conforme o artigo 89 da Lei nº 9.099/95.
 
A situação em nada muda no concernente ao inciso V do §2º - fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro. Assim, resta transparente que o legislador considerou a fraude contra seguros como congênere das figuras apresentadas no caput.
 
Com o devido respeito, a forma como é tratada pela Lei Penal a figura típica constante do mencionado inciso, reflete absoluto desacordo com a Constituição Federal, bem como, com sua co-irmã, a Lei Civil, pois não pode mais a fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro ser considerada mero estelionato, com sujeição a pena branda e suspensão condicional do processo.
 
A prática de conduta ilícita com o objetivo de obtenção de indenização ou valor de seguro não é atentatória somente ao patrimônio da seguradora (pessoa jurídica). O princípio da função social trouxe às relações contratuais de seguro nova interpretação no que diz respeito ao objeto material exarado no artigo 171, §2º, V, do Código Penal. Na verdade, quando se “destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro”, se está lesionando a coletividade, a sociedade; não se trata de mera lesão a patrimônio particular.
 
A prática do referido delito macula a confiabilidade contratual. Ademais, não bastasse isso, a obtenção de indenização nesses termos acarreta não somente perda financeira para a seguradora, mas sim, é a ponta de um iceberg na desestruturação econômica de um país.
 
Não carece ressaltar também que, a não alteração do dispositivo pelo legislador corrobora sobremaneira com ampliação do risco, já que não coíbe apropriadamente a incidência do crime. É deveras inaceitável que se coloque num mesmo patamar de gravidade a prática da fraude contra particular e coletividade.
 
Diante da dificuldade financeira sofrida por muitos, analisando-se o custo-benefício, é vantajoso ao indivíduo inescrupuloso correr o risco de fraudar o seguro. Se não for descoberto, aumenta o seu patrimônio; se for surpreendido, poderá aceitar a suspensão do processo, saindo praticamente ileso.
Restam duas alternativas: a alteração do dispositivo, atribuindo-lhe o devido valor e gravidade, ou então, a interpretação do Judiciário no sentido de considerar a função social do contrato quando da dosimetria da pena. Entendemos mais coerente a primeira alternativa, já que a interpretação da lei em desfavor ao réu corrompe princípio basilar do direito.